29.9.10

Entrevista com Ki-Zerbo

Trecho do livro acima:

Globalizadores e Globalizados

Pergunta de René Holenstein: O processo de globalização registrou, nos anos noventa, uma aceleração extraordinária. A economia em rede é onipresente, a "aldeia planetária" tornou-se preverbial. Mas, ao mesmo tempo, desenvolveu-se a resistência contra o neoliberalismo. Nos países industrializados, muitas pessoas consideram-se mais como vítimas do que como beneficiárias da globalização. Aparentemente, os capitães da economia mundial estão cheios de compreensão relativamente aos motivos da oposição. Alan Greenspan, presidente do banco central dos Estados Unidos, reconhece o "receio legítimo" que os alterglobalista¹ tem de perder, no nivel local, o controle político do seu destino.Klaus Schwab, fundador do Fórum Economico Mundial de Davos², declara que os temores expressos nos movimentos de protesto são compreensíveis. Michel Camdeussus, antigo diretor-geral do Fundo Monetário Internacional (FMI), pensa que a "globalização, por aprocimar os povos, pode ser um avanço  para a unidade do mundo". Segundo ele, "não se deve nem saxralizá-la, nem demonizá-la, mas tentar humanizá-la em nome da dignidade da pessoa". qual é a sua apreciação da globalização? Do que se trata Exatamente? Quais são os desafios para os países africanos?

Ki-ZerboDo ponto de vista africano, a globalização é o desenvolvimento logico do sistema capitalista de produção. Este atingiu um patamar a partir do qual deve necessariamente adquirir dimensões planetárias - ou desaparecer. Os conceitos de competitividade e rentabilidade levam a uma espécie de darwinismo³ econômico. Resultado: só os mais aptos - the fittest, como dizem os ingleses - sobreviverão. Através da globalização, o capitalisno sai do quadro puramente nacional para adotar dimensões planetárias, ou mesmo  cósmicas. a propriedade bem localizada no tempo está prestes a voar em estilhaços, como resultado dos movimentos de capitais especulativos. A economia da demanda solvente, proposta por John M. Keynes para estimular as economias nacionais e mundial extremamente fluido da distribuição do controle econômico, que não funciona a favor dos consumidores. Outrora, o capitalismo funciona, quase exclusivamente, em função das trocas. Vendem-se e compram-se ações, e os atores deste jogo do dinheiro nas bolsas internacionais ganham dez ou vinte vezes mais, por dia, do que aqueles que investem o seu dinheiro na produção. Voltamos ao capitalismo mercantil, mais num sistema ainda mais desumano que o capitalismo do século XIX.
  Diante de um modelo econômico desta natureza, na ausência de uma verdadeira burguesia nacional, o capitalismo africano não tem qualquer chance, salvo como parte de um sistema criado a partir do século XVI e hoje dominado pela tríade Estados Unidos-Europa-pólo asiático. O capitalismo mundial está dotado de tecnologias de comunicação extremamente sofisticadas, que estão longe do controle dos africanos, mesmo parcialmente. O mercado da informática, no nivel da produção, é-nos quase estranho. A economia mundial tornou-se uma economia de inteligência e de informação; basea-se cada vez menos na matérias-prima dos países do Sul. Já nem quer consumir os produtos brutos que a África foi obrigada a produzir e a extrair da sua terra durante o periodo colonial. veja-se, por exemplo, a substituição do cobre pelas fibras ópticas, que arruinou Zambia. As palavras de ordem exibidas por alguns parceiros da África, segundo as quais a África não deveria perder "o trem do terceiro milênio", são estúpidas.É verdadeiramente o que se chama o ópio do povo, para abusar das pessoas e lança-las numa corrida a frente, quando se sabe que elas nunca conseguirão atingir a meta enquanto certas condições prévias não estiverem preenchidas.
  Com o fim da Guerra Fria, todo o planeta se tornou o tabuleiro de jogo do capitalismo. é como uma especie de arena, onde só se enfrentam gladiadores de primeira categoria. A África tornou-se ainda e mais vulnerável diante de um capitalismo deste gênero. Já nem sequer pode desempenhar o papel que os colonizadores franceses ou ingleses atribuíram. Durante o período anterior, sob a capa das nações européias, pode-se ter esperança de avançar. Agora, o capitalismo desembaraçou-se das escórias de tipo nacional. Os dirigentes africanos, que foram formados na escola das instituições de Bretton Woods* que são impelido a torna-se chefes de Estado na África, deixaram de ter esta referência nacional, quer colonial quer neocolonial.
  Em outras palavras, não se globaliza inocentemente. Penso que dificilmente poderemos ter um lugar na globalização, porque fomos desestruturados e deixados de contar como seres coletivos. Se você comparar o papel da África com o dos Estados Unidos, verá os dois pólos da situação na globalização: os globalizadores, que são os Estados Unidos, e os globalizados, que são os africanos. Não sei de que lado você se situa; quanto a mim, eu sei que sou um globalizado. A África, como continente, situa-se mais nesta categoria, porque é uma questão de relação de forças. É a questão de saber se somos sujeitos da história, se estamos aqui para desempenhar um papel na peça de teatro. Na realidade, não há peça onde só há atores principais. Também deve haver figurantes, e nós, africanos, fomos classificados como figurantes, isto é, como utensílios e segundas figuras para pôr em destaque os papéis dos protagonistas.

Pergunta de René Holenstein: Como o senhor avalia a globalização de um ponto de vista histórico?

Ki-Zerbo: O papel da África nunca mudou a partir do século XVI, é este o nosso problema. Alguns Estados nacionais desempenham o papel de locomotiva e outros desempenham, há já alguns séculos, o papel de vagões. Mesmo que a locomotiva aumentesse a sua velocidade, isso nada mudaria na posição dos vagões: nunca se viram vagões ultrapassando a locomotiva! Mas sabemos que são estruturalmente complementares, pelo menos enquanto os vagões eceitarem sua posição.
  A África evoluiu, como todos os outros povos do mundo, de maneira progressiva, desde os primeiros agrupamentos humanos da Antiguidade egípcia até o século XVI, através das chefaturas, dos reinos, dos impérios cada vez mais importante, isto apesar da dificuldade representada pelo Saara, que ocupa quase um terço do continente. Em Mali, um desenvolvimento notavél, atestado pelos cientistas e viajantes da época, tinha integrado a escrita co o saber e o poder da civilização autóctone, Nos séculos XIII e XIV, a cidade de Tombuctu era mais escolarizada que a maioria das cidades análogas na Europa. Escolarizada em árabe, bem entendido, mas, por vezes, as línguas subsaarianas também eram expressas na escrita árabe. Aí lecionavam cientistas e professores do ensino superior que eram tão estimados no mundo da intelligentsia  - tanto da África quanto do mundo árabe e da Europa - que os discípulos atravessam o Saara para ouvir os mestres de Tombuctu, Djenne e Gao.
  No século XVI, começou a invasão vinda do exterior: uma grande intromissão, com as "grandes descobertas" da África ao sul do Saara e da América Latina. Essas descobertas implicaram,como você sabe, o trafico dos negros. Depois do genocídio dos índios na América, o trafico custou a vida de dezenas de milhões de africanos, que foram arrancados a este continente e expedidos, em condições atrozes, para além do Oceano Atlântico. Nenhuma coletividade humana foi mais inferiorizada do que os negros depois do século XV.Foram encomendados escravos negros aos milhões; utilizaram-se os negros como reprodutores de outros negros, em "caudelarias" constituídas para produzir novos negrinhos para o trabalho nas plantações. quantas crianças africanas foram jogadas dos navios, ou abandonadas nos mercados de escravos, longe das mães que eram levados, porque era preciso muito tempo para alimentar até que fosse exploráveis? Os escravos eram comprados às toneladas. Amputava-se e esquantejava-se como carne bruta os rebeldes ditos "negros castanhos". Durante esse tempo, na Europa, Os teólogos debatiam doutamente a questão de saber se os negros tinham alma. Foi uma pergunta que não se fez a propósito de outros grupos humanos. Tudo isso é conhecido, ninguém pode negá-lo. Mas como se pode conseguir não reconhecer que toda a espécie humana foi inferiorizada, humilhada, crucificada por esse tratamento? O tráfico dos negros foi o ponto de partida de uma desaceleração, um arrastamento, uma paragem da história africana. Não falo da historia África, mas de uma inversão, uma reviravolta da historia africana. Se ignorarmos o que se passou como tráfico dos negros, não compreenderemos nada sobre a África.
  A colonização realizou uma segunda forma de economia global. Primeiro, através do tráfico dos negros e da escravatura, a África tinha contribuído para impulsionar a Europa para a industrialização. A colonização foi muito mais curta do que o tráfico dos negros, mas foi mais determinante. O colonialismo substituiu inteiramente o sistema africano. Fomos alienados, isto é, substituídos por outros, inclusive no novo passado. os colonizadores preparavam um assalto à nossa história. o "pacto colonial" queria que os países africanos produzissem apenas produtos em bruto, matéria-primas a enviar para o Norte para a indústria européia. A própria África foi aprisionada, dividida, esquartejada, sendo-lhe imposto esse papel: fornecer matérias-primas. Esse pacto colonial dura até hoje. Se analisarmos a balança comercial dos países africanos, veremos que 60% a 80% do valor das suas exportações são matérias-primas. Para alguns deles, é cobre, para outros é a bauxita, o urânio ou o algodão. Quando, juntamente com Kwame Nkrumah, Amílcar Cabral* e outros, nos batiamos pela independência africana, replicavam-nos: "Vocês nem podem produzir uma agulha, como querem ser independentes?" Mas por uqe razão os nossos países não podiam produzir nem sequer uma agulha? Porque, durante cem anos de colonização, tinham-nos remetido para esse papel preciso: não produzir nem sequer uma agulha, mas matérias-primas, isto é, despojar todo o continente. No plano político, os africanos foram mobilizados para "lutas nobres". Não falo das guerras sujas coloniais onde se utilização uns contra os outros - no Vietnã, na Argélia, em Madagascar e em outros locais. durante o Primeira e a Segunda Guerras Mundiais, os nossos irmãos, as nossas irmãs, os nossos pais participaram da luta contra o nazismo e o fascismo. contribuímos, como seres humanos, para defender os princípios sagrados da dignidade humana.
  Hoje, quando nos falam de globalização, você pode compreender as hesitações dos africanos. Bem entendido, há africanos de posição social mais elevada que vão morder essa isca. Pelo seu nível de vida ou por seu papel nas organizações internacionais ou nacionais, fazem parte dos globalizadores, como seus parceiros. Mas a maioria consciente, que já sofre os efeitos negativos, desconfia da isca, porque não é a primeira vez que lhe falam de economia global. Os movimentos e mobilizações dos sindicatos contra as privatizações são significativos. Porque os trabalhadores sabem que a lógica implacável do lucro, dos empresários privados, é exercida à sua custa.

Pergunta de René Holenstein: Quais são os pontos comuns das três fases da globalização?     

Ki-Zerbo: Há elementos de continuidade, pelo menos no próprio princípio da economia capitalista, especialmente o lucro. É a idéia de manter o mercado livre e de fazer crer que todos se aproveitarão dele ao maximo e do melhor modo. Mas, com as novas tecnologias da comunicação, estamos perante uma economia de oferta: produz-se em quantidade, procurando-se fabricar consumidores para adaptá-los à produção. Creio que este é o centro do sistema capitalista atual. E a África, mais uma vez, neste domínio, está muito mal dotada.

notas: 1 Chamado originalmente "antiglobalismo", o alterglobalismo surgiu como um movimento de resistência contra o modelo economico neoliberal. Aos poucos, incluiu novas bandeiras fora do âmbito econômico, como preservação de identidades culturais e direitos humanos. Passou, assim, de uma contestação intra-ocidental a um movimento mundial, voltado para a busca de modelos alternativos de desenvolvimento.

2 O Fórum Econômico Mundial (World Economic Fórum, WEF) é uma fundação criada em 1971, com sede em Genebra (Suíça), cujos membros são escolhidos por sua posição no ramo de negócios ou no seu país de origem, e pela dimensão global de suas atividades. Esses menbros, as aproximadamente mil maiores empresas do mundo, pagam uma anuidade de $12.500; os parceiros são cerca de 100 membros com direito de decisão, que pagam uma anuidade de $ 250.000. Sua reunião anual, para a qual são convidados alguns líderes políticos, intelectuais e jornalistas, é realizada em Davos, na Suíça. O WEF é visto, por seus membros, como um lugar privilegiado para o debate dos problemas economicos do planeta, e, por seus críticos, como um forúm empresarial em que as grandes crporações internacionais negociam entre si e criam mecanismos ára pressionar os governos para que aceitem seus planos de negócios.

3 Charles Darwin (1809-1882), médico inglês, formulou uma teoria da evolução das espécies, que contrariava totalmente o pensamento cientifico oficial da epóca, fundamentado na doutrina bíblica da criação, ao afirmar que as espécies atualmente existentes resultam de um processo evolutivo, sendo que a direção da evolução é dada pela sobrevivência dos indivíduos mais capazes de cada geração. Essa teória foi indevidamente aplicada ao estudo das sociedades humanas, dando uma base pseudocientífica a idéia de que o topo da evolução humana consiste no indivíduo do gênero masculino, branco, vivendo em meio urbano. No campo da economia, a idéia de luta pela sobrevivência é usada para justificar a ação de empresas e até países.
* Conferência Monetária e Financeira das Nações Unidas, realizada em Bretton Woods (EUA), em 1944, a fim de fazer um plano econômico para o pós-guerra. Aí foram projetados o Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD) e o futuro Monétario Internacional (FMI).
** Termo criado na Rússia czarista, que designa uma elite intelectual constituida como classe social.
***Amílcar nasceu na antiga Guiné Portuguesa (atual Guiné Bissau), em 1924. Em 1932 foi pra Cabo Verde, onde começou a a trabalhar na imprensa nacional. Estudou agronomia em Lisboa , e em 1952 passou a trabalhar nos serviços Agricolas e Florestais da Guiné. Expulso do país em 1955, foi para Angola, ligando-se ai Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA). Em 1955 foi criado o Partido Africano da Indepêndencia da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) na Guiné Portuguesa. em 1960, o partido abriu uma delegação em Conacri, de onde Amílcar Cabral passou a dirigir a luta pela indepêndencia de Bissau. Em 1973, Cabral doi assassinado por um comando da Guiné Portuguesa, apoiado pelo governo de Conacri, que realizou uma operação para prender e eliminar os dirigentes do PAIGC sediados nesse país.

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